Fiquei imaginando o que eu diria se fosse entrevistado sobre a
cessação e a continuação dos dons espirituais mencionados na Bíblia, e daí
nasceu esta sessão fictícia de perguntas e respostas. As perguntas estão em negrito e itálico.
Pastor Augustus, os dons espirituais cessaram?
Primeiro é necessário definir a que dons nos referimos. Acredito
que o Espírito continua até hoje a conceder à Igreja a maioria dos dons
mencionados na Bíblia. Mas, tenho a impressão que outros dons foram concedidos
somente por um tempo a determinadas pessoas, para atender aos propósitos de
Deus para aquela época. Estes não estariam mais disponíveis hoje. Por isto, é
necessário, antes de qualquer coisa, esclarecer a que dons estamos nos
referindo quando dizemos que os dons cessaram ou que continuam.
Outra coisa a ser levada em consideração é que, de acordo com a
história bíblica, Deus não agiu sempre da mesma maneira em todas as épocas. Há
muitas ações miraculosas e sobrenaturais que ocorreram somente uma vez ou
durante um tempo específico e não foram repetidas. Portanto, por princípio,
devemos admitir que Deus é soberano para agir de diferentes maneiras através da
história, e que dentro desta ação, ele concede diferentes dons a diferentes
pessoas em diferentes épocas. Assim, não podemos nem restringir a ocorrência de
determinados dons somente a um período da história e nem requerer que todos os
dons terão necessariamente de ocorrer em todos estes períodos.
Então, você não se definiria como um cessacionista?
Se por cessacionista você quer dizer uma pessoa que não acredita
que o Espírito Santo conceda dons espirituais à sua Igreja nos dias de hoje, é
claro que não sou cessacionista. Se, por outro lado, um continuísta seria
alguém que acredita que todos os dons espirituais mencionados na Bíblia estão
disponíveis hoje à Igreja, bastando ter fé para recebê-los, é claro que também
não sou um continuísta. Creio num caminho intermediário para o qual ainda não
achei um nome. Não posso ser chamado de cessacionista e nem de continuísta,
pois creio que alguns dons continuam como eram no Novo
Testamento, outros cessaram e outros continuam apenas em parte.
Bem, a discussão moderna gira mais em torno dos dons chamados
sobrenaturais, como curas, línguas, profecias... se Deus é o mesmo hoje, ontem
e eternamente, estes dons não estariam disponíveis hoje, como estavam na época
dos apóstolos?
Poderíamos perfeitamente aplicar a estes dons e outros o princípio
acima, de que Deus age de maneiras diferentes em épocas diferentes. Não podemos
confundir a imutabilidade de Deus - que significa que ele
não muda em seu ser e seus atributos - com a “mesmice” de Deus, que
significa que ele sempre age da mesma forma. Teoricamente, ele poderia ter
concedido os dons relacionados com curas, línguas e profecias a algumas pessoas
durante o período apostólico e uma vez cessado aquele período, suspendido a
atuação dos mesmos. Não vejo em que admitir isto afeta a imutabilidade de Deus
ou diminui o seu poder e sua glória. Querer que Deus sempre atue da mesma
maneira, isto sim, engessa Deus num padrão rígido e não admite que Ele tenha
maneiras diferentes de agir em épocas diferentes para atingir seus propósitos.
Mas o que havia de tão especial no período apostólico para Deus
conceder estes dons sobrenaturais?
Foi o período de transição entre a antiga e a nova alianças. Teve
a ver com a vinda de Jesus Cristo ao mundo e o cumprimento de todas as
promessas que Deus havia feito a seu povo pelos profetas de Israel. Foi a
inauguração dos últimos dias, do fim dos séculos, da última hora e do fim dos
tempos. Foi a época em que o Espirito prometido foi derramado. Deus levantou os
Doze e Paulo para através deles explicar e registrar estes fatos no Novo
Testamento. Era necessário, portanto, que o período mais importante da história
da redenção fosse marcado por sinais, prodígios e maravilhas feitos por pessoas
extraordinárias como os apóstolos e seus associados. Era preciso deixar claro
que era Deus quem estava por detrás daqueles acontecimentos e da mudança da
aliança. Uma parte dos dons mencionados no Novo Testamento está relacionada diretamente
com este período e com os apóstolos, como o dom de curar e fazer milagres e a
profecia como veículo de novas revelações. O dom de línguas, aparentemente,
estava também associado àquela época, como sinal externo da chegada do Espírito
Santo aos diferentes grupos que compunham a Igreja em seu início (judeus,
samaritanos, gentios e discípulos de João Batista). Mas, parece que ele servia
a outros propósitos além deste mencionado.
A questão é que estes dons aparecem em algumas das listas de dons
espirituais do Novo Testamento como ferramentas do Espírito dadas a todos os
crentes para edificar a igreja de Cristo. E agora?
Não vejo dificuldades. Estas listas aparecem em Efésios 4, Romanos
12, 1Coríntios 12 (2 listas) e 1Pedro 4. O que precisamos é definir com mais
precisão o que significam cada um destes dons. O que significa, por exemplo, o
dom de profetizar, que aparece nestas listas? Os crentes que tinham o dom de
profetizar nas igrejas cristãs eram profetas iguais a Isaías e Jeremias, que
foram capazes de predizer o futuro de Israel e das nações com incrível
precisão? Ou será que os profetas cristãos se limitavam a edificar, exortar,
consolar e instruir as igrejas, como Paulo diz em 1Coríntios 11:3 e 31? E o que
significa o dom de curar e de realizar milagres? Por que só encontramos este
dom associado ao ministério dos apóstolos? E por falar nisto, o que significa “apóstolo”
na lista de Efésios 4? O termo pode significar tão somente enviados,
missionários, sem qualquer relação com os Doze e Paulo. Infelizmente as pessoas
não levam em conta que existem determinados aspectos da função do profeta, do
ofício do apóstolo e mesmo do dom de línguas, os quais parecem estar
relacionados somente àquela época. Se levarmos em conta estas coisas, podemos
até dizer que todos os dons continuam hoje, mas que alguns aspectos ou
atributos deles cessaram após o período dos apóstolos.
E qual seria então o critério para dizermos quais os dons que
permanecem para os dias de hoje e quais os que cessaram?
Acredito que a regra de ouro é esta: todos os dons que foram
veículos de novas revelações ou que estavam ligados diretamente aos
instrumentos das revelações, que foram os apóstolos, cessaram com a morte
deles. Ilustrando, o dom de profecia continua hoje, conforme entendo, mas
somente enquanto exortação, consolo, confrontação pela Palavra. Já o aspecto
revelatório da profecia que vemos, por exemplo, em João ao escrever Apocalipse,
ou em Paulo e Pedro ao prever como será o futuro, a vinda de Cristo, a ressurreição
dos mortos, etc., isso certamente não faz parte da profecia hoje. Já cessou.
Da mesma forma o dom do apostolado. Se entendermos apóstolo como
missionário, enviado das igrejas para pregar o Evangelho aos povos (é este o
sentido básico do termo em grego), não vejo problemas em dizer que ainda hoje
temos apóstolos entre nós, que são os missionários que vão desbravar campos ainda
não atingidos pelo Evangelho. Mas, certamente não existem mais apóstolos no
sentido dos Doze e Paulo, que viram o Senhor Jesus ressurreto, foram chamados
diretamente por Ele pessoalmente ou numa aparição após a ressurreição, e que
receberam não somente poderes extraordinários de curar e realizar milagres,
como foram também veículos da revelação divina, tendo profetizado acerca do futuro
de Deus para seu povo e o mundo. E mais, seus escritos às igrejas foram
inspirados pelo Espírito Santo, de forma que são infalíveis e inerrantes, sendo
a própria Palavra de Deus. Obviamente, nenhum dos que se intitulam de apóstolo
hoje tem estas credenciais. Portanto, não podem ser considerados apóstolos como
Pedro, Tiago, João e Paulo. Este é um dos dons que permanece hoje somente em
parte.
Por este critério o dom de línguas teria cessado também?
Não necessariamente, pois, até onde eu entendo, ele não era
revelacional, isto é, não era veículo de novas revelações, como a profecia.
Acredito que o relato de Atos e de 1Coríntios 14 nos dão informações
suficientes de que o conteúdo das línguas era o louvor a Deus (Atos 2:11;
10:46). O dom consistia na capacidade de louvar e exaltar as grandezas de Deus
num idioma que a pessoa desconhecia, e que tinha de se traduzido para a
edificação da igreja. Portanto, teoricamente, este dom não precisaria ter
cessado pois não era revelacional. Todavia, temos indícios significativos da
história da igreja de que ele cessou após o período apostólico. Na
eventualidade de uma ocorrência genuína deste dom hoje, esperaríamos que fosse
de acordo com as regras bíblicas de 1Coríntios 14: dois ou três falando, em
sequência, e com interpretação. Como normalmente não é este o caso nas igrejas
que dizem ter este dom, continuo tendo dúvidas de que o que está acontecendo
nelas é a manifestação do genuíno dom de línguas. Mas, em tese, estou aberto
para a ocorrência do dom genuíno.
Mas, então, isto quer dizer que os crentes que falam em línguas
são mentirosos ou estão sendo influenciados pelo diabo?
Claro que não. Seria uma temeridade afirmar este tipo de coisa.
Prefiro pensar que em boa parte das ocorrências são irmãos em Cristo sinceros que
pensam estar de fato falando em línguas por terem sido ensinados desta forma
dentro de determinados ambientes. Eles foram ensinados que falar em línguas é
balbuciar palavras sem sentido num êxtase emocional. Há alguns que inclusive
foram ensinados por seus pastores a como fazer isto, tipo “relaxe a língua,
forme uma palavra desconhecida em sua mente e repita até que saia
espontaneamente da sua boca...”
Não consigo perceber qual é o mal em se falar em línguas hoje nas
igrejas. Qual o problema?
Se as línguas faladas não forem de Deus, a imitação delas deve
trazer algum prejuízo ou perigo de natureza espiritual. Não posso afirmar ao
certo, mas imagino que pode produzir arrogância, falsa espiritualidade, e abrir
a porta para a atuação de demônios ou da natureza pecaminosa do homem. Na
verdade, estes perigos estão presentes em qualquer manifestação que seja
meramente humana, e não somente línguas.
Alguns diriam que você nunca falou em línguas porque nunca foi
realmente batizado com o Espírito Santo...
Hehe, eu sei, já me disseram isto na cara, num congresso de irmãos
pentecostais onde estive como visitante. Bom, a minha resposta é que acordo com
Paulo todos os crentes verdadeiros já foram batizados com o Espírito Santo
(1Cor 12:13) mas nem todos falam em línguas (1Cor 12:30). Se não for assim,
terei de dizer que os reformadores e os grandes missionários da história da
igreja nunca foram batizados com o Espírito Santo, pois nunca falaram em
línguas. Todavia, se formos fazer uma comparação, eles fizeram mais pelo Reino
de Deus do que estes que hoje insistem em dizer que as línguas são o sinal
inequívoco do batismo com o Espírito Santo...
Mudando de assunto... Deus cura hoje?
Sem dúvida alguma. Eu mesmo já fui curado por Deus. Todavia é preciso
fazer a diferença entre o dom de curar e as curas que Deus faz em resposta à
oração. Aqueles que tinham o dom de curar - e parece que estava restrito aos
apóstolos e seus associados - nunca falhavam. Cada vez que determinavam a cura,
ela acontecia. Não há caso registrado de alguém com dom de curar, como Paulo e
Pedro, terem comandado a cura que ela não tenha acontecido. E estamos falando
da cura de cegos, coxos, aleijados, surdos e mudos, muitos dos quais nem tinham
fé. E mesmo da ressurreição de mortos. Obviamente não apareceu depois dos
apóstolos ninguém na história da Igreja, até os dias de hoje, com este mesmo
poder. E estou falando de homens como Agostinho, Lutero, Calvino, Wesley,
Whitefield, Hudson Taylor, Spurgeon, Moody e outros homens de Deus, que não
podem ser acusados de não terem fé ou de serem carnais.
Isso não quer dizer que Deus deixou de curar depois dos apóstolos.
Ele cura sim, ao responder as orações por cura quando quiser. E nem sempre ele
responde positivamente. Se fosse feita uma pesquisa, aposto que ela revelaria
que existe proporcionalmente o mesmo número de doentes entre aqueles que dizem
acreditar que o dom de curar existe hoje e aqueles que acham que já cessou.
Isto é, vamos encontrar nos leitos dos hospitais proporcionalmente o mesmo
número de membros doentes de igrejas que dizem ter o dom de curar e daquelas
que não pensam assim.
Jesus disse certa feita que quem cresse nele faria os mesmos
sinais que ele fez. Esta promessa é verdadeira ou não?
O que Jesus disse foi que eles fariam as mesmas obras. Ele não
disse que fariam os mesmos sinais (ver João 14:12). Embora o termo “obras”
possa se referir aos milagres dele, é mais provável que Cristo se referia à
obra de evangelização e conquista de almas, que foi efetivamente a única obra
que os apóstolos fizeram que era maior do que as realizadas por ele. Sobre
isto, escrevi um post aqui no blog O Tempora, O Mores, dando as
razões exegéticas para esta interpretação. A verdade é que nunca ninguém
conseguiu superar os milagres de Jesus ao longo de dois mil anos de história do
Cristianismo.
E quanto a sonhos e visões?
De acordo com o autor da carta aos Hebreus, Deus de fato se
revelou de maneira extraordinária antes de Cristo, falando através dos profetas
por meio de visões e sonhos, conforme encontramos no Antigo Testamento. Com a
vinda do Senhor Jesus, que é a Palavra encarnada e portanto a última e maior
revelação de Deus, estes modos de revelação cessaram, à medida que os apóstolos
e escritores no Novo Testamento registraram de maneira infalível e definitiva
esta última revelação.
Não digo que Deus não possa hoje se manifestar de maneira
extraordinária a um crente. Mas, então, seria o caso de uma experiência
pessoal, que não pode ter validade e utilidade pública e nem ser usada como
meio para se impor alguma prática ou doutrina aos demais. A maneira geral,
normal e esperada de Deus se comunicar conosco hoje é pelo Espirito falando
pelas Escrituras e pela sua Providência, que é a maneira sábia pela qual Deus
controla e governa os acontecimentos.
Vamos voltar ao dom de profecia. Afinal, ele existe hoje ou não?
Depende do que estamos falando. Os profetas do Antigo Testamento,
como Isaías e Ezequiel por exemplo, receberam de Deus revelações quanto ao
futuro de Israel, nas nações daquela época e da humanidade em geral. Estas
revelações foram registradas em livros com o nome destes profetas e fazem parte
da Bíblia. Além da profecia preditiva, os profetas exortavam o povo de Deus a
que se arrependessem de seus pecados e voltassem à obediência da aliança. Na
verdade, os livros deles trazem proporcionalmente muito mais exortações e
advertências do que predições do futuro.
Os sucessores dos profetas do Antigo Testamento foram os apóstolos
do Novo Testamento. Paulo, Pedro, João e os demais apóstolos também receberam
revelações de Deus quanto ao futuro, a saber, a vinda de Cristo, a ressurreição
dos mortos, o novo céu e a nova terra.
Os profetas das igrejas locais no período apostólico não eram
iguais aos profetas do Antigo Testamento como Isaías, Jeremias, Oséias, Joel,
Amós, etc. Entendo que o dom de profecia que aparece nas listas de dons do Novo
Testamento se refere à capacidade dada por Deus a determinadas pessoas para
trazerem uma palavra de Deus à igreja, baseada nas Escrituras, em momentos de
crise e necessidade. O profeta exortava, edificava e instruía os crentes
reunidos. Não vejo qualquer base para dizermos que o dom de profetizar no Novo
Testamento é o poder para revelar o que está acontecendo na vida íntima dos
outros ou anunciar o futuro da vida das pessoas. Se fosse feito um registro da
quantidade de profecias deste tipo que se mostraram falsas, não cumpridas ou
que são tão gerais que cabe tudo nelas, já teríamos concluído de vez que o dom
de profetizar não é isto.
Mas, e o caso do profeta Ágabo no livro de Atos que profetizou por
duas vezes acontecimentos futuros?
Ágabo profetizou por duas vezes fatos que estavam relacionados com
a vida e o ministério do apóstolo Paulo, durante o período em que as Escrituras
estavam sendo feitas e no qual Paulo era o principal protagonista. Me parece
claramente uma situação excepcional e bastante diferente do período atual da história
da igreja.
Não acha que essa sua posição acaba por extinguir e apagar o
Espírito e impedir a ação de Deus no meio de seu povo? Não é este o pecado
imperdoável, a blasfêmia contra o Espírito Santo?
Acho que o maior pecado contra o Espírito é desobedecer as
orientações que Ele nos deu na Bíblia para examinarmos todas as coisas. Ele
orientou os escritores bíblicos a escreverem aos crentes dizendo que eles
deveriam estar atentos contra manifestações espirituais que não procediam de
Deus, contra a ação de falsos profetas e falsos irmãos e mesmo contra a ação de
espíritos enganadores que são capazes de realizar sinais e prodígios
(Apocalipse 16:14). O Espírito nos chama a discernir os espíritos, a exercitar
o bom senso e usar a razão. Pecamos contra o Espírito ao aceitarmos as
manifestações espirituais de maneira crédula, sem exame ou análise, renunciando
às orientações bíblicas e à nossa razão. É pela omissão dos crentes que os
falsos profetas entram nas igrejas e disseminam heresias perniciosas.
Qual o seu comentário final aos nossos ouvintes?
Não considero a questão da contemporaneidade dos dons como sendo
uma daquelas que se acham no coração do cristianismo. Não estou negando a
importância da discussão se todos os dons que aparecem na Bíblia estão
disponíveis hoje ou não. A verdade é que cristãos verdadeiros que são
cessacionistas ou continuístas têm o mesmo desejo, que é servir a Deus de todo
coração e serem instrumentos de bênção para os outros. Por outro lado, se não
tivermos uma compreensão clara de um assunto como este, poderemos não somente
nos privar da verdade como também promover a mentira – em ambos os casos, mesmo
que o prejuízo não seja fatal, certamente afetará a nossa vida e das pessoas ao
nosso redor.
fonte: http://tempora-mores.blogspot.com.br/2013/02/entrevista-sobre-cessacionismo-e.html