A Duplicidade e seus
Problemas: A Predestinação é Dupla?
R.C. Sproul1
Há diferentes visões da dupla
predestinação. Uma delas é tão amedrontadora que muitos a evitam
totalmente, para que sua visão da doutrina não se confunda com ela,
que seria absurda. Esta é chamada de visão da destinação
simultânea.
A destinação simultânea é
baseada no conceito da simetria. Procura um equilíbrio completo
entre eleição e reprovação. A idéia chave é esta: Assim como
Deus intervém nas vidas dos eleitos para criar fé em seus corações,
também assim igualmente intervém nas vidas dos reprovados para
criar ou operar incredulidade em seus corações. A idéia de Deus
ativamente operando incredulidade nos corações dos reprovados é
extraída das declarações bíblicas sobre Deus endurecendo os
corações das pessoas.
A destinação simultânea não
é a visão reformada ou calvinista da predestinação. Alguns a têm
chamado de “hiper-calvinismo”. Eu prefiro chamá-la de
“sub-calvinismo”, ou, melhor ainda, de “anti-calvinismo”.
Embora o calvinismo certamente tenha uma visão de dupla
predestinação, a dupla predestinação que ele abraça não é a da
destinação simultânea.
Para entender a visão
reformada sobre o assunto, precisamos prestar muita atenção à
crucial distinção entre os decretos positivos
e negativos
de Deus. Positivo tem a ver com a intervenção ativa de Deus nos
corações dos eleitos. Negativo tem a ver com Deus deixando de lado
os não-eleitos.
A visão reformada ensina que
Deus positivamente e ativamente intervém nas vidas dos eleitos para
garantir sua salvação. O resto da humanidade Deus deixa por si
mesmos. Ele não cria incredulidade em seus corações. Essa
incredulidade já está lá. Ele não os coage a pecar. Eles pecam
por suas próprias escolhas. No calvinismo, o decreto de eleição é
positivo. O decreto de reprovação é negativo.
A visão hiper-calvinista da
dupla predestinação pode ser chamada de
predestinação
positiva. A
visão do Calvinismo ortodoxo pode ser chamada predestinação
positiva-negativa.
Vamos vê-la em diagrama:
CALVINISMO
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HIPERCALVINISMO
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|
O terrível erro do
hipercalvinismo é que envolve Deus na coação do pecado. Isto faz
violência radical à integridade do caráter de Deus.
O exemplo bíblico primário
que poderia tentar alguém para o hipercalvinismo é o caso do Faraó.
Repetidamente lemos na narrativa de Êxodo que Deus endureceu o
coração de Faraó. Deus contou a Moisés, muito antes do tempo, que
ele faria isto:
Tu falarás tudo que eu te
ordenar; e Arão, teu irmão, falará a Faraó, para que deixe ir da
sua terra os filhos de Israel. Eu, porém, endurecerei o coração de
Faraó, e multiplicarei na terra do Egito os meus sinais e as minhas
maravilhas. Faraó não vos ouvirá; e eu porei as minhas mãos sobre
o Egito e farei sair as minhas hostes, o meu povo, os filhos de
Israel, da terra do Egito, com grandes manifestações de julgamento.
Saberão os egípcios que eu sou o Senhor, quando estender eu a minha
mão sobre o Egito e tirar do meio deles os filhos de Israel. (Êx
7.2-5)
A Bíblia claramente ensina que
Deus, de fato, endureceu o coração de Faraó. Agora sabemos que
Deus fez isto para sua própria glória e como um sinal, tanto para
Israel quanto para o Egito. Sabemos que o propósito de Deus em tudo
isto era um propósito redentor. Mas ainda ficamos com um problema
crítico. Deus endureceu o coração de Faraó e então julgou Faraó
por seu pecado. Como pode Deus considerar Faraó ou qualquer um
responsável pelo pecado que flui de um coração que o próprio Deus
endureceu?
Nossa resposta a essa pergunta
dependerá de como nós entendemos o ato de Deus de endurecer. Como
Ele endureceu o coração de Faraó? A Bíblia não responde
explicitamente a esta pergunta. Ao pensarmos nela, percebemos que
existem somente duas maneiras pelas quais Ele poderia ter endurecido
o coração de Faraó: ativamente ou passivamente.
O endurecimento ativo
envolveria a intervenção direta de Deus nas câmaras internas do
coração de Faraó. Deus irromperia
no coração de Faraó
e criaria nele um mal adicional. Isso garantiria que Faraó
produziria o resultado que Deus estava procurando. Isso também
asseguraria que Deus é o autor do pecado.
O endurecimento passivo é uma
história totalmente diferente. O endurecimento passivo envolve um
julgamento divino sobre o pecado que já está presente. Tudo o que
Deus tem a fazer para endurecer o coração de uma pessoa cujo
coração já é desesperadamente mau é “entregá-la a seu
pecado”. Encontramos este conceito de julgamento divino
repetidamente na Escritura.
Como isto funciona? Para
entender devidamente, devemos primeiro dar uma rápida olhada em
outro conceito, o da graça comum
de Deus. Isto refere-se à graça de Deus da qual os homens comumente
gozam. A chuva que refresca a terra e rega nossas colheitas cai sobre
os justos e os injustos igualmente. Os injustos certamente não
merecem tais benefícios, mas, de qualquer modo, desfrutam deles. É
assim com o sol brilhando e com o arco-íris. Nosso mundo é um
teatro da graça comum.
Um dos mais importantes
elementos da graça comum de que gozamos é a restrição do mal no
mundo. Essa restrição flui de muitas fontes. O mal é restringido
pelos policiais, pela lei, pela opinião pública, equilíbrio de
poder e assim por diante. Embora o mundo em que vivemos seja cheio de
maldade, não é tão mau como poderia ser. Deus usa os meios
mencionados acima, bem como outros meios, para manter o mal sob
controle. Por sua graça ele controla e restringe a quantidade de mal
neste mundo. Se o mal fosse deixado totalmente sem controle, então a
vida neste planeta seria impossível.
Tudo que Deus tem a fazer para
endurecer o coração das pessoas é remover as restrições. Ele
lhes dá uma corda mais longa. Em vez de restringir sua liberdade
humana, ele a aumenta. Ele deixa que elas façam as coisas do seu
próprio modo. Em certo sentido, ele lhes dá corda suficiente para
que elas se enforquem. Não é que Deus coloque sua mão sobre elas
para criar o mal novo em seus corações; ele meramente remove delas
sua santa mão de restrição, e deixa que façam sua própria
vontade.
Se fôssemos determinar o homem
mais ímpio, o mais diabólico da história humana, certos nomes
apareceriam nas listas de quase todos. Veríamos os nomes de Hitler,
Nero, Stalin, que foram culpados de assassinato em massa e outras
atrocidades. O que estas pessoas têm em comum? Eles todos foram
ditadores. Eles todos tinham, virtualmente, poder ilimitado dentro
das esferas de seus domínios.
Por que dizemos que o poder
corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente? (Sabemos que isto
não faz nenhuma referência a Deus, mas somente ao poder e corrupção
dos homens.) O poder corrompe precisamente porque levanta uma pessoa
acima das restrições normais que restringem o restante de nós. Eu
sou restringido por conflitos de interesse com pessoas que são tão
poderosas ou mais poderosas do que eu. Aprendemos cedo na vida a
restringir nossa beligerância para com aqueles que são maiores do
que nós. Tendemos a entrar em conflito seletivamente. A discrição
tende a sobrepor-se à bravura quando nossos oponentes são mais
poderosos do que nós.
Faraó era o homem mais
poderoso do mundo quando Moisés foi vê-lo. A única restrição que
havia sobre a maldade de Faraó era o santo braço de Deus. Tudo que
Deus tinha a fazer para endurecer mais a Faraó era remover seu
braço. As inclinações malignas de Faraó fizeram o restante.
No ato de endurecimento
passivo, Deus toma a decisão de remover as restrições; a parte má
do processo é feita pelo próprio Faraó. Deus não faz violência à
vontade de Faraó. Como dissemos, ele simplesmente dá a Faraó mais
liberdade.
Vemos o mesmo tipo de coisa no
caso de Judas e com os homens maus que Deus e Satanás usaram para
afligir Jó. Judas não era um pobre inocente vítima da manipulação
divina. Ele não era um homem reto que Deus forçou a trair Cristo e
então puniu pela traição. Judas traiu Cristo porque Judas quis
trinta moedas de prata. Como as Escrituras declaram, Judas foi um
filho da perdição desde o início.
Com certeza, Deus usa as más
inclinações e as intenções malignas dos homens decaídos para
produzir seus próprios propósitos redentivos. Sem Judas não há
cruz. Sem a cruz não temos redenção. Mas este não é o caso de
Deus coagindo ao mal. Em vez disso, é um glorioso caso do triunfo
redentor de Deus sobre o mal. Os maus desejos dos corações dos
homens não podem frustrar a soberania de Deus. Na realidade, estão
sujeitos a ela.
Quando estudamos o padrão de
Deus para a punição dos homens maus, vemos um tipo de justiça
poética emergindo. Na cena de julgamento final do Livro de
Apocalipse lemos o seguinte:
Continue o injusto fazendo
injustiça, continue o imundo ainda sendo imundo; o justo continue na
prática da justiça, e o santo continue a santificar-se. (Ap 22.11)
No último ato de julgamento de
Deus, ele entrega os pecadores a seus pecados. Com efeito, ele os
abandona a seus próprios desejos. Assim foi com Faraó. Através
deste ato de julgamento, Deus não manchou sua própria justiça
criando mal adicional no coração de Faraó. Ele estabeleceu sua
própria justiça punindo o mal que já estava lá no coração de
Faraó.
É assim que nós devemos
entender a dupla predestinação. Deus dá misericórdia a seus
eleitos operando fé em seus corações. Ele dá justiça aos
reprovados deixando-os em seus próprios pecados. Não há simetria
aqui. Um grupo recebe misericórdia. O outro grupo recebe justiça.
Ninguém recebe injustiça. Ninguém pode queixar-se de que há
injustiça em Deus.
1
Capítulo 7 do livro Eleitos de Deus, da Editora Cultura
Cristã, 2002.